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ARTIGO: QUAL SEU LUGAR NO MUNDO? Uma reflexão a partir de Estela sem Deus

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ARTIGO: QUAL SEU LUGAR NO MUNDO?
Uma reflexão a partir de Estela sem Deus

Prof Ricardo

Prof. Me. Ricardo Neves Borges – UniRV
Doutorando em Educação pela Unisinos

Às vezes, em sala de aula, reflito com meus alunos que o conhecimento não segue uma linha reta. Os saberes vêm e vão, se entrelaçam e se somam ao que já adquirimos. É preciso ter paciência para estudar, mesmo quando, naquele momento, não conseguimos perceber a aplicação prática de determinado conteúdo. Com o tempo, em algum ponto da trajetória, ele fará sentido e, então, você compreenderá.
Essa paciência para esperar que o conhecimento amadureça ganhou ainda mais sentido para mim em uma frase que li logo nas primeiras páginas de Estela sem Deus: “As filósofas são assim: dizem palavras que só vão fazer sentido depois de terem feito certas voltas dentro da gente”.
Essa frase abre caminho para compreendermos o enredo. Por isso, antes de aprofundar nossa reflexão sobre qual é o nosso lugar no mundo, quero contextualizar o livro de Jeferson Tenório, que logo de início já me trouxe uma provocação: quem é Estela e por que sem Deus?
Estela é uma menina negra, oriunda de uma família pobre, formada pela mãe, pelo irmão mais novo e marcada pela ausência do pai. Nesse contexto, ela busca compreender o mundo ao seu redor, questionar a realidade e, pouco a pouco, encontrar sua própria voz.
Mas por que sem Deus? Essa expressão funciona como uma alusão à falta de proteção, cuidado e amparo diante das inúmeras adversidades vividas pela personagem: a pobreza que marca seu cotidiano, a ausência do pai, o peso de viver em uma sociedade desigual, a responsabilidade precoce ao lado da mãe e do irmão, e a solidão diante de um mundo que pouco lhe oferece. Não se limita somente ao aspecto religioso, mas adquire também um sentido simbólico: o abandono por parte de uma sociedade que já deixou, deixa e possivelmente continuará deixando tantas crianças entregues à própria sorte. Assim, Estela sem Deus expressa a condição de invisibilidade social de uma menina que, mesmo ferida pelas circunstâncias, busca compreender o mundo e construir um sentido para a vida, ainda que “sem Deus”.
Voltando ao título, já parou para refletir, de fato, qual é o seu lugar no mundo? O mundo que você está hoje foi uma escolha consciente ou foi escolhido por circunstâncias que o cercaram? Ou será que você apenas acabou exercendo profissionalmente aquilo que, em algum momento, simplesmente deu certo?
Mesmo que você não tenha lido o livro, reflita a partir da descrição feita: Estela poderia realmente escolher o seu mundo? As condições em que cresceu lhe dariam a possibilidade de disputar, em igualdade, qualquer posição social, educacional ou profissional?
Não desejo induzir você a uma resposta pronta, mas provocar uma reflexão. Afinal, como lembra Renato Janine Ribeiro, “não há pior inimigo do conhecimento que a terra firme”: o saber se constrói no movimento, na dúvida e no questionamento constante. Para contribuir com essa reflexão, trago a obra de François Dubet, Repensar la justicia social: contra el mito de la igualdad de oportunidades. O autor destaca que a solução não é que todos ocupem as mesmas posições, mas sim que essas posições não estejam excessivamente distantes entre si.
Dubet critica a noção de igualdade de oportunidades, que defende que todos teriam chance de “subir” e alcançar melhores posições com base no mérito. Para ele, essa crença é uma ficção estatística ou mito, pois ignora os mecanismos estruturais que perpetuam desigualdades.
Essa crítica evidencia como a própria estrutura social — renda, condições de vida, acesso a recursos — molda e limita as possibilidades de mobilidade social. Dubet cita na obra os países escandinavos, que, em vez de focarem apenas na mobilidade individual, reduzem as distâncias sociais por meio de políticas redistributivas e proteção universal, garantindo dignidade mesmo a quem ocupa posições menos privilegiadas.
Isso não significa negar a importância do mérito. Ele é um incentivo legítimo ao aprimoramento pessoal, ao estudo e à busca por conhecimento. O problema surge quando se sustenta a ilusão de que todos partem das mesmas condições e, portanto, poderiam chegar aonde quisessem apenas pelo esforço individual. Essa visão ignora a desigualdade estrutural. O mérito, então, tem valor quando reconhece o esforço e a excelência, mas não pode servir como justificativa para considerar todos iguais em qualquer tarefa, desconsiderando contextos, limites e diferenças sociais — pontos aprofundados por Michael Sandel em A Tirania do Mérito.
Assim, se o conhecimento é esse movimento que não se dá de forma reta, mas vai e volta até encontrar sentido dentro de nós, Estela simboliza justamente essa travessia. Mesmo invisível, mesmo sem proteção, ela busca compreender o mundo e construir a própria voz. Estela sem Deus nos lembra que aprender, questionar e resistir também são formas de existir — e de afirmar um lugar no mundo, ainda que esse lugar pareça, à primeira vista, lhe ser negado.
Ao pensar em Estela, percebemos que sua história não é apenas literária, mas o reflexo de tantas vidas que seguem invisíveis diante de estruturas sociais que limitam escolhas e possibilidades.
E nós, afinal, qual o nosso lugar nesse mundo? Talvez a resposta não esteja em aceitar passivamente a posição que nos foi dada, mas em reconhecer que o sentido do conhecimento, da justiça e da própria vida se constrói quando ousamos questionar, compreender e transformar o espaço em que estamos inseridos.
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